quarta-feira, 7 de julho de 2010

Passagem de um Hazara

AS MÃOS DELE ESTÃO AMARRADAS NAS COSTAS com uma corda grossa que lhe fere a carne dos pulsos. Os seus olhos estão cobertos com uma venda preta. Ele está de joelhos na rua, à beira de uma valeta cheia de água parada, com a cabeça pendida entre os ombros. Os seus joelhos raspam no chão duro e sangram através das calças enquanto ele balança o corpo, rezando. Já é final de tarde e a sua sombra comprida oscila para frente e para trás no cascalho. Está murmurando alguma coisa bem baixinho. Chego mais perto. “Faria isso mil vezes” murmura ele. “Por você, faria isso mil vezes.” Balança o corpo para frente e para trás. Ergue a cabeça. Percebo uma ligeira cicatriz acima de seu lábio superior.

Não estamos sozinhos.

A primeira coisa que vejo é o cano da arma. Depois, o homem que está por trás dela. Ele é alto, usa uma túnica em tecido espinha-de-peixe e um turbante preto. Olha para o homem vendado à sua frente com olhos que não revelam nada, a não ser um enorme vazio cavernoso. Dá um passo atrás e ergue a arma. Encosta o cano na nuca do homem ajoelhado. Por um momento, os raios do sol poente batem no metal e cintilam.



O rifle dispara com um estrondo ensurdecedor.
Acompanho com os olhos o cano da arma, desde a ponta até a culatra. Vejo o rosto por detrás da fumaça que sai daquele orifício.

O homem com a túnica de tecido espinha-de-peixe sou eu.

Acordo com um grito entalado na garganta.

(Passagem do livro: O caçador de pipas)

1 comentários:

Anônimo disse...

caracolis....